segunda-feira, 26 de setembro de 2016


Antropologia e Globalização:
Desafios da Antropologia ( também da Religião) ante o Impacto da Globalização[1]


Há grande resistência entre os antropólogos no que tange a percepção da globalização como um evento histórico, suscetível de ser tratado como objeto de investigação. O discurso antropológico dominante procurou manter-se imune aos desafios da globalização, tendo em vista os questionamentos feitos à própria identidade da disciplina, fundamentada numa prática, a etnografia, supostamente distinta e/ou oposta à globalização. Isso se trataria, no entanto, de uma ilusão típica dos antropólogos conservadores.

Como sugerido por James Clifford, a antropologia se encontra em posição particularmente vulnerável e reveladora diante das crises contemporâneas, o que torna seus dramas disciplinares fontes privilegiadas para se compreender a globalização.

A hipótese aqui é a de que haveria um parentesco de fundo entre conservadorismo antropológico e parte considerável da literatura sobre globalização. A disputa, em geral, se situa simplesmente na questão da definição do que é determinante, se o local, o global ou alguma combinação dos dois, ou seja, estamos diante de realidades inseparáveis da própria ação humana.

Vista em termos de perspectiva, a questão da globalização exigiria uma leitura mais detida da tradição antropológica, algo que enfrentasse não apenas os desafios de um novo objeto, mas também a desnaturalização ou desconstrução de uma série de hábitos profissionais com repercussão na avaliação da própria história da disciplina, sobretudo na de algumas tendências hoje dominantes.

Como demonstrado na controvérsia entre Obeyesekere e Sahlins, há dificuldades de relacionamento de uma disciplina estabelecida, no caso a antropologia conservadora, com correntes gerais de pensamento que refletem, com menor resistência, as tendências ou o espírito da época, aqui a globalização. Obeyesekere reverbera no interior da antropologia algumas preocupações que têm sido organizadas em torno da noção de “pós-colonialismo”.  Sahlins, por sua vez, responde em nome da tradição (uma versão hegemônica) disciplinar. Contudo, mesmo não dando o braço a torcer, a antropologia avança seletiva e camufladamente, buscando não abalar os alicerces da disciplina.

Até a noção de cultura, tão associada à identidade da disciplina, tem sido discutida, sendo revista e/ou tornando-se objeto de múltiplas apropriações, provocando, assim, uma sensação de perda de monopólio (até no mercado de trabalho). Tal sensação se expressa na forma de uma demanda por ordem na disciplina.

Há, portanto, sérios desafios à antropologia na contemporaneidade. O primeiro deles diz respeito à generalização de uma sensibilidade com a qual a antropologia se identificava, a diferença. A diferença vista agora não só para localizar o outro “externo”, mas para pensar as diferenças internas às sociedades, aos grupos, aos indivíduos para muito além do que poderiam imaginar os clássicos da antropologia, quase desconstruindo, assim, por exacerbação a própria, noção de cultura.

A antropologia passa a ser contestada de um modo diferente do praticado pelo bom e velho etnocentrismo que ela acostumara a ter como adversário, sendo, agora, ela mesma acusada de etnocentrismo e de representante de um olhar externo. A antropologia, na verdade, foi transformada, em alguns círculos, em cúmplice de uma ideologia dominante e etnocêntrica. Não obstante tudo isso, porém, a tendência mais interessante no momento possivelmente não seja a de retorno a um discurso universalista, mas de um discurso oposto: o das semelhanças e das aproximações contingentes. Oposto também ao discurso das diferenças reificadas - que não leva às últimas conseqüências a discussão da alteridade -, contestando, assim, uma exótica da diferença. Esse discurso das semelhanças, com ênfase no contingente, não anularia a diferença, apenas a sua exótica. E estaria associado a um estranhamento que incluiria reflexivamente a nossa própria condição, movimento do pós-estruturalismo que a antropologia como disciplina jamais chegou a realizar até as ultimas conseqüências. Tratar-se-ia de um reencontro com a “humanidade” e a uma diferença que, apostando num mundo descentrado, se associaria menos à hierarquia (lugar-comum postulado pela antropologia) e mais ao diálogo e, conseqüentemente, à pesquisa de semelhanças que aproximem, mesmo na “interlocução” científica com os “objetos”.

Uma modificação lenta, desigual e sem formalização na antropologia, mas ocorrida, quiçá nos últimos quinze anos, é a que diz respeito à uma desconfiança crescente quanto à referência a totalidades fechadas, que pressuporiam relações permanentes entre suas partes e com o exterior. Isso tem se manifestado, como que em relação metonímica com a globalização, nas revisões da noção de cultural, com a demanda por concepções menos reificadas e que levem em conta uma dinâmica que inclui a sua permanente “invenção” e o poder da ação humana como geradora de cultura, contra toda impressão de imobilismo. Associado a isso há o reaparecimento de noções como hibridismo e sincretismo, sempre presentes de alguma forma em outros discursos. Há também uma ênfase crescente nos processos e nas interconexões concretas, quase como uma retomada do difusionismo, mas ganhando relevo as contingências, as negociações e os acordos entre os grupos sociais.

Tais novas tendências têm ressonância nas próprias concepções da pessoa, a qual é cada vez mais percebida como complexa, sendo abaladas as noções fixas de identidade construídas por meio de oposições.

O papel da reflexividade e da competência relativizadora na constituição e reconstituição das identidades sociais também tem sido destacado. A relação entre “social” e “cultural” tem igualmente estado sujeita à revisão.

Alterações dessa natureza podem e têm sido explicadas em termos de avanço do conhecimento e de aperfeiçoamentos metodológicos, produtos da própria pratica da pesquisa. Essa, então, e não sua rejeição, parece ser a nova linha de defesa disciplinar. Isso advêm da idéia de que estamos diante de tendências que atravessam diferentes domínios, disciplinas e, quiçá, sobretudo a consciência comum, em complexa inter-relação.

Sobre essa consciência comum, temos o exemplo da pentecostalização, a qual, distante de uma tendência fundamentalista, se utiliza da oposição entre as figuras de Deus e do Diabo como veiculo e operador, através do neopentecostalismo, de uma espécie de troca que busca desfazer outros dualismos, sem culpas. O propósito desse dualismo não maniqueísta, mas utilitário, é reconciliar o antes irreconciliável no pentecostalismo, a saber, os dois mundos incomunicáveis, o do aqui e agora e o da salvação futura e metafísica. É aqui e assim que o terreno das contingências, do aqui e agora e do cotidiano ganha centralidade. A clássica oposição entre religiosidades de possessão (em que o tempo se identifica com um eterno presente) e religiosidades messiânicas (de redenção e salvação) é reconciliada. Tal empresta nova dignidade à ênfase na prosperidade, essa como sinal de libertação, a qual, por sua vez, se confunde com a legitimação da fruição dos bens mundanos, indicativo também de uma aproximação entre o humano e o divino, outro dualismo posto em questão.  A questão não é mais sobre obra e graça, isto é, sobre salvação, mas sobre a busca de uma nova linguagem religiosa que afirme e dê sentido a isso através da reapropriação, resultado do descolamento e autonomização da prática mundana. A quase total ausência de uma teologia no sentido estrito não prejudica transformações que uma perspectiva culturalista fixista e isolacionista não imaginaria como desdobramentos possíveis da narrativa cristã. Essas transformações possivelmente estão em relação oculta “sincrética” com outras tradições, inclusive orientais, por via da crença no poder do pensamento, e seu desdobramento no poder da palavra, que no Brasil encontrou terreno fértil para se desenvolver. Isso lhe emprestaria surpreendente parentesco com a “Nova Era” e com a literatura dita “esotérica” e a de auto-ajuda.

Hermeneuticamente, em nenhum desses casos é possível detectar uma razão interna que tornasse necessária essa convergência. No caso do pentecostalismo, por exemplo, sua presença inicial caracterizava-se pelo ascetismo e pela desvalorização do mundo, exatamente o oposto do que vem se revelando agora. É como se, de fato, estivéssemos diante de uma ampla e potencialmente “global” situação dialógica, mas que para ser plenamente entendida, e não banalizada nem esvaziada de sentido, precisaria ser posta no contexto de um pano de fundo de desejo de semelhança, presente e mediador até na constituição das diferenças, que, se não anula, faz um reparo às energias postas na dimensão do “interno”, reificada na definição moderna de “domínios” e, mesmo, “culturas”.

Alphonse Dupront (1993), no contexto católico, sugeriu que estamos hoje diante de uma corrosão da cultura cristã (uma descristianização) que impede a transmissão da mensagem religiosa por via da tradição. Diante dessa constatação, o movimento pentecostal e o carismático se imporiam: a volta do Espírito como sinal dos tempos, ultrapassando os limites de uma racionalidade estabelecida. Reinterpretando a idéia de Dupront de quebra da tradição no sentido posto pela literatura atual sobre destradicionalização, podemos dizer que essa se identificaria menos com a quebra da tradição e mais com a reflexividade e conseqüente perda de alinhamento automático com a tradição, o que seria aparentemente próprio de uma hermenêutica, que interrompe o pertencimento ao mundo por tradição a fim de significar (Ricoeur,1995). Poderíamos, então, associar essa “pentecostalização” a outros elementos ligados à destradicionalização, como a ênfase no presente, nas diferenças, na experimentação, no indivíduo e na ruptura com a noção de representação.

Niklas Luhmann e alguns sociólogos da religião como Bryan Wilson, Peter Beyer, etc. falam de uma mudança nas “funções” da religião, mudança oculta ao antropólogo, quiçá, por sua típica ilusão, ele o campeão das contextualizações.

No campo religioso, a outra face da pentecostalização poderia ser, como já indicado, uma generalizada “desteologização” que não se restringiria aos grupos ditos pentecostais. Mas na verdade, até dentro do espírito de Pentecostes — “o Espírito sopra onde quer” — a pentecostalização poderia por sua vez ser aproximada de outras experiências afetivas fortes, como as associadas em geral aos “estados alterados de consciência” e à “libertação”. Libertação, aliás, também comprometida com outro elemento — a ênfase pragmática nos resultados — que parece substituir a ênfase clássica na conversão, na mesma medida em que as manifestações substituem os argumentos.

Não se pode negar que a ênfase material e simbólica na questão do dinheiro ao mesmo tempo corresponde e produz uma ênfase e uma linguagem dos nossos tempos, como também a utilização plena dos recursos da mídia e das expressões musicais disponíveis.

A globalização, sem ser sinônimo de totalidade, ocuparia a sua posição como o novo nome do desenvolvimento e da modernização que se querem universais.

A globalização, evidentemente, tem de estar sujeita a outros tratamentos além do que está sendo proposto aqui, cuja função seria a de chamar a atenção para um pano de fundo do qual se supõe que o reconhecimento tenha conseqüências.



[1] Resumo e/ou recortes de VELHO,Otávio.Globalização: Antropologia e Religião. Rio de janeiro. MANA 3(1):133-154,1997.

sábado, 24 de setembro de 2016

Limitações, Alcances e Novos Desafios:
Natureza e Avanços do Estudo Científico das Religiões[1]



Os oráculos secularistas que previam o desaparecimento das religiões não se cumpriram. Antes pelo contrário, a religião nunca encontrou tanto lugar nas sociedades humanas como no século XXI. O fato é que a religião não foi diluída pelo amadurecimento racional dos homens, antes, por esse e outros motivos, ela se transformou,se desenvolveu,mudou, se adequando, assim, ao novo mundo e às novas realidades da existência humana. 

Como se constatou, a religião nunca esteve ausente da presença humana, o mundo nunca vivenciou uma experiência de “desencantamento”. Ao mesmo tempo que essas descobertas surpreenderam os secularistas, também voltaram a atenção de estudiosos e especialistas para a pesquisa do fenômeno religioso, desde a segunda metade do século XX. 

Uma discussão importante surgida entre os estudiosos da religião diz respeito à chamada perspectiva com que o observador e/ou investigador do fenômeno religioso estuda a religião. A questão é sobre o caráter e a relação entre duas perspectivas de estudo da religião, a perspectiva interior, confessional, teológica, do crente, e a perspectiva exterior, científica, objetiva. A perspectiva exterior se caracteriza por uma observação comparativa e histórica dos fenômenos religiosos; busca uma posição imparcial que possibilite a comparação sistemática de várias religiões nos seus contextos sociais e históricos.

Essa perspectiva, portanto, parte do pressuposto de que o estudo público das religiões não pode prescindir de suas origens culturais e de sua relação com a sociedade.  Na segunda metade do século XX, foi o antropólogo Clifford Geertz quem contribuiu para uma das grandes viragens da história do estudo científico das religiões, em sua obra Religion as a Cultural System, publicada em 1966, onde, quase em oposição à forma substancial e funcional, desenvolveu um modelo cultural-simbólico no qual é defendida a possibilidade de uma religião estabelecer um sentido específico para formas diferentes de existência ou moldar uma ordem cósmica. 

A principal questão seria, então, de que forma podem símbolos revelar-nos as maneiras como os indivíduos de uma sociedade pensam, interagem ou constroem as suas mundividências. Não obstante sua influência, especialmente porque parece possibilitar entender outras formas culturais sem a influência da própria semântica do investigador, aspectos do modelo de Geertz são criticados. Há especialmente a denúncia de que tal visão seja demasiadamente eurocêntrica. 

Quanto ao terminológico “religião”, não obstante estudiosos como o psicólogo americano James H. Leuba tenham enumerado centenas de definições para o termo, a ponto de se tornar até mesmo impossível mensurar todas as definições existentes, a tendência atual na Ciência das Religiões é a de evitar qualquer tentativa de definição de seu objeto de pesquisa, não obstante a carência de uma definição do objeto de pesquisa seja uma das questões mais prementes da referida ciência hoje. Essa problemática parece ter sido causada pelas definições universais do eurocentrismo, por um lado, e pelo fato histórico de que o estudo científico das religiões é mais recente do que o uso popular do termo “religião” (Arnal, 2000: 21). Não obstante a religião não possa ser definida e/ou não exista enquanto definição, o termo ocidental “religião” continua sendo um conceito indispensável para o estudo dos fenômenos religiosos, como declara Smith (Smith, 1998: 281-182).  

Toda essa problemática sobre o objeto e sujeito do estudo das religiões também nos conduz para a conseqüente negação do caráter monolítico da Ciência das Religiões. A Ciência das Religiões não possui nem um objeto definido de pesquisa, nem uma metodologia específica para o estudo do mesmo. Em outras palavras, ninguém sabe exatamente o que é uma religião e nem como estudá-la adequadamente. 

Ademais, e conseqüentemente, a religião é um fenômeno que também pode e é estudado por outras disciplinas científicas tais como a história, a psicologia, a lingüística e a filologia.  Portanto, a indefinição quanto ao objeto e a inexistência de uma metodologia adequada faz com que a Ciência das Religiões seja outra coisa, menos uma ciência monolítica

Não obstante, isso também se constitui numa grande vantagem inter e multidisciplinar para a Ciência das Religiões. Ou seja, a indefinição de um objeto e a ausência de um método adequado abre para a contribuição de várias outras disciplinas e referenciais teóricos para o estudo das religiões, com suas próprias metodologias e perspectivas de estudo.  

Sobre o estado do estudo científico das Religiões hoje é preciso fazer referência ao paradoxo em relação à presença e/ou ausência da religião na Europa. Existe a interminável discussão sobre a secularização e modernização do continente europeu, o que pressuporia a exclusão da religião desse ambiente continental. Tal pareceria ter encontrado confirmação no aparente declínio das práticas religiosas, como se pode ver na ausência dos fieis dos edifícios religiosos institucionalizados. O estudo das religiões, então, seria apenas um luxo acadêmico ou anacronismo científico sem qualquer relevância para a sociedade moderna.

Essas conclusões, todavia, têm se mostrado precipitadas. Pois, não obstante, os jornais diários e/ou a televisão trata regularmente, na Europa, sobre fenômenos religiosos, sobre a multiplicação galopante de pequenos grupos religiosos, sem falar nas muitas lojas de produtos para todas as predileções esotéricas e o apetite popular intenso por livros de conteúdo místico e/ou semi-religioso. O grande desafio da Ciência das religiões, assim, consiste na reação adequada a essas transformações na manifestação do religioso e no pensamento religioso do indivíduo.





[1] Resumos e/ou recortes a partir de DIX, Steffen. O que significa o estudo das religiões: uma ciência monolítica ou interdisciplinar? Lisboa, 2007.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O Sagrado e o Profano em Mircea Eliade (1907-1986)

ELIADE,Mircea.O sagrado e o profano.[tradução Rogério Fernandes].São Paulo:Martins Fontes,1992.Pgs.13-57.

          O historiador das religiões, Mircea Eliade, começa, em sua Introdução, por nos brindar com uma menção sintética e honrosa à obra de seu antecessor na pesquisa do Sagrado, Rudolf Otto. Eliade pondera que “em vez de estudar as ideias de Deus e de religião, Rudolf Otto aplicara-se na análise das modalidades da experiência religiosa [...] conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa experiência” (ELIADE,1992,P.13). Otto dedica-se à irracionalidade da religião (ELIADE,1992,P.13). Diferentemente de Otto, e a partir de sua definição ampla e mais complexa do sagrado, isto é, “que ele se opõe ao profano” (ELIADE,1992,P.14), Eliade pretende “ilustrar e precisar essa oposição entre o sagrado e o profano” (ELIADE,1992,P.14).

          O homem toma conhecimento do sagrado por meio de sua hierofania, a qual sacraliza objetos e espaços que, não obstante, mantem o que são, sendo, contudo, outra coisa (sagrada) agora (ELIADE,1992,P.16). Eliade também tem por escopo “constatar que a dessacralização caracteriza a experiência total do homem não-religioso das sociedades modernas” (ELIADE,1992,P.17).

          O sagrado e o profano constituem dois modos de existir e/ou de ser no mundo, “duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história” (ELIADE,1992,P.18). E o interesse por esse objeto de estudo é multidisciplinar, interessando a todo “investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana” (ELIADE,1992,P.16).

          O primeiro capítulo propriamente dito é sobre o espaço sagrado e a sacralização do mundo ((ELIADE,1992,Pgs.21-57).  Não há homogeneidade espacial na experiência religiosa; “para o homem religioso, o espaço não é homogêneo [...] há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras” (ELIADE,1992,P.21).  A rotura na homogeneidade do espaço, ocasionada por uma hierofania, funda e/ou fixa ontologicamente o mundo, revelando, outrossim, uma realidade absoluta (ELIADE,1992,P.22). Na homogeneidade da extensão espacial, cria-se ou revela-se, por meio da hierofania, um “ponto fixo”, um “centro”, ponto de referência e de orientação existencial (ELIADE,1992,P.22). Pela criação de tal “ponto fixo”, o espaço sagrado oferece uma orientação em meio a homogeneidade caótica e/ou relativa do espaço profano, constituído este de “fragmentos de um universo fragmentado”, onde os espaços são relativos e/ou relativizados, sem um estatuto ontológico único, de acordo com as necessidades e/ou ditames de uma “sociedade industrial” (ELIADE,1992,P.23).

          Malgrado tudo isso, há também “lugares sagrados” no espaço profano que dizem respeito à “outra realidade”, diferente da do cotidiano (ELIADE,1992,P.24), porém sem dimensão religiosa. Trata-se de percepção não-religiosa de “outra realidade” e outra não-homogeneidade, símile do espaço sagrado, no espaço profano (ELIADE,1992,P.21).


          Sacralização do espaço profano pode se dar por meio de uma teofania ou mesmo apenas de um sinal, evocatio, auxiliado por animais, com o fim de livrar o homem da homegeneidade caótica, obtendo assim orientação (ELIADE,1992,P.26). Ainda sobre a sacralização do espaço e/ou do mundo, Eliade pontua que “a consagração de um território equivale à sua cosmização” (ELIADE,1992,P.29), o que significa, outrossim, a (re) criação do cosmos, do mundo e/ou sua ordenação cósmica (ELIADE,1992,P.29-30). Essas tomadas rituais de terra são repetições cosmogônicas (ELIADE,1992,P.29-30). A comunicação com o céu, subentendida e simbolizada na consagração territorial e sua cosmização, constitui-se fator primordial de orientação, orientatio, frente ao caos do “nosso mundo” (ELIADE,1992,P.32,55). A sacralização do mundo, então, nada mais é do que a busca pelo mundo primordial das divindades cosmogônicas, tendo em vista o inserir-se nesse mesmo mundo, nele vivendo e nele se completando: “é a experiência do Tempo sagrado que permitirá ao homem religioso encontrar periodicamente o Cosmos tal como era in principio, no instante mítico da Criação” (ELIADE,1992,P.58-57).

O Sagrado em Rudolf Otto (1869-1937)

OTTO,Rudolf.O Sagrado: um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e a sua relação com o racional.[Tradução Prócoro Velasquez Filho]. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista,1985. Pgs.7-54.

          O teólogo, historiador (das religiões) e filósofo Rudolf Otto, em sua obra revolucionária, publicada, originalmente, em 1917, o Sagrado, nos desvela a inovadora perspectiva da ideia do divino, denominada por ele de numinoso (de numen deus), como experiência religiosa não-racional (ou irracional), e/ou não esgotável racionalmente, e seus aspectos.

          Em sua Introdução, Otto começa por demonstrar a racionalidade do teísmo (cristão) no que tange à sua formulação e expressão por meio de conceitos, noções e predicados racionais, os quais tornam o divino tanto acessível ao pensamento e à análise, quanto suscetível à definição. Nas palavras de Otto, “Toda concepção teísta, e de maneira especial a concepção cristã de Deus, tem como característica essencial a compreensão clara da divindade e a sua definição através de predicados [...]” (OTTO,1985,P.7). Diante disso, Otto ressalta a superioridade do Cristianismo em relação às demais religiões por sua racionalidade na expressão do divino e/ou sagrado por meio de noções. Em seus termos, “o cristianismo usa noções [...] Esta é uma das características essenciais que marcam a superioridade do cristianismo sobre outras religiões.” (OTTO,1985,P.7).

          O autor adverte, malgrado, que tal racionalidade da experiência religiosa, em termos de noções, conceitos e predicados racionais, e sintéticos, não a pode esgotar, pois há algo de não-racional (ou irracional) na religião ou no sagrado. “Não se pode pensar que os predicados racionais que nós indicamos, e outros mais, esgotariam a essência da divindade” (OTTO,1985,P.8). “ A religião não se esgota em seus enunciados racionais” (OTTO,1985,P.1). A linguagem se refina, mas não pode esgotar o Sagrado: “Toda linguagem [...] tem por objetivo transmitir noções e quanto mais essas noções forem claras e inequívocas, melhor será a linguagem” (OTTO,1985,P.8).

          Caso não houvesse, no entanto, alguma racionalidade na ideia do divino ou na experiência religiosa, quanto à sua apreensão, a mesma seria incompreensível, nada podendo ser dito sobre ela, sendo, assim, incognoscível (OTTO,1985,P.8). Portanto, a religião tem algo de racional, mas não se esgota racionalmente e/ou não se reduz ao racional, conservando elementos não-racionais (OTTO,1985,Pgs.7-9). A religião é, assim, concomitantemente, sempre racional e não-racional (irracional).

          Na sequência, Otto concebe o racionalismo, oposto radicalmente à religião, nesse sentido, como o reducionismo racional e/ou esgotabilidade racional da religião ou ideia do divino. Em outras palavras, a oposição entre a religião e o racionalismo se dá quando esse último pensa poder esgotar racionalmente a primeira e/ou reduzi-la ao racional (OTTO,1985,Pgs.8-9). O elemento racional não sobrepuja, nem exclui o elemento não-racional na ideia de Deus (OTTO,1985,P.8). “[...] a religião não se esgota em anunciados racionais, e em colocar em evidência a relação de seus elementos de tal sorte que ela tome consciência de si mesma” (OTTO,1985,P.9).  Conceber, então, que a religião pode ser esgotada racionalmente, por seus anunciados racionais, predicados racionais, noções e conceitos, ignorando seu caráter não-racional, é puro e verdadeiro racionalismo (OTTO,1985,P.8-9).O autor ressalta, outrossim, que a perspectiva meramente racional (ista) de Deus na própria ortodoxia (cristã) ignora o caráter não-racional da religião, expresso na experiência religiosa (dos místicos, por exemplo) e que, dessa forma, a ortodoxia se mostra racionalista, não salvaguardando “o elemento não-racional de seu objeto” (OTTO,1985,P.9), a saber, não mantendo “viva a experiência religiosa”.


          Para Otto, o Sagrado é o numinoso não-racional, nem racionalizantemente esgotável, da experiência religiosa, em seus aspectos diversos (OTTO,1985,Ps.11-15). O numinoso diz respeito ao elemento vivo da religião ou experiência religiosa, abstração, outrossim, do elemento moral e do elemento racional (OTTO,1985,P.12). Concebe-se como sentimento de dependência, porém distinto da concepção dessa mesma dependência por Schleiermacher (OTTO,1985,Ps.13-14). O Misterium Tremendum é o aspecto do numinoso que, por sua vez, se desdobra no tremor místico, no majestas ou superioridade absoluta do poder numinoso e na energia desse último, a denominada orgé  que capacita e incita a vida religiosa (OTTO,1985,Ps.17-28). O mistério do numinoso é o fenômeno não-racional do mesmo que, paradoxalmente, nos aterroriza e nos afasta por sua incompreensão soberana, e alteridade absoluta, mas que também nos atrai e nos aproxima (OTTO,1985,Ps.29-45). Tenta-se compreender o tremendo e misterioso numinoso através da categoria do “sublime” e esquematizações analógicas (OTTO,1985,Ps.47-52). “O elemento numinoso, não-racional, esquematizado por noções racionais, dão-nos a categoria complexa do sagrado [...]” (OTTO,1985,Pgs.50-51).